Para
se assistir a uma festa d’aldeia, em Trás-os-Montes, é necessário, não envergar
a cota de malha dos cavaleiros da Renascença, mas levar para segurança própria,
o arsenal d’um Tartarin de Tarascon,
de Daudet.
Quatro
carabinas, dois punhais, uma espada, um pau, um revólver e um par de pistolas.
E
isto não quer dizer que o transmontano seja mau… longe d’isso; a hospitalidade transmontana
é lendária, principalmente nas aldeias, mas porque as rivalidades de aldeia para
aldeia, são muitas, rivalidades que se pagam em castanha pilada e da fina, quando em qualquer dos povos rivais, se realizam
festejos. São os ódios tão violentos que gente estranha completamente a essas
rivalidades é vítima muitas vezes.
Mas
passemos a descrever a festa, O Sermão, o arraial, a procissão.
Para
descrevemos esta última, depomos a pena e deixamos falar António Nobre, na sua
fase colorida e quente:
Passa
a procissão;
Estralejam
foguetes e morteiros.
Lá vem o Pálio e
pegam ao cordão
Honestos e
morenos cavalheiros.
Altos, tão altos
e enfeitados, os andores,
Parecem Torres de
David, na amplidão!
Que linda e
asseada vem a Senhora das Dores!
Olha o Mordomo. à
frente, o Sr. Conde.
Contempla! Que
tristes os Nossos Senhores,
Olhos leais fitos
no vago... não sei onde!
Os anjinhos!
Vêm a suar:
Infantes de três
anos, coitadinhos!
Mãos invisíveis
levam-nos de rastros
Que eles mal
sabem andar.
Esta que passa é
a Noite cheia de astros!
(Assim estava, em
certo dia, na Judeia!
Aquele é o Sol!
(Que bom o Sol de olhos pintados!)
E aquela é a
Lua-Cheia!
Seus doces olhos
fazem luar...
Essa, acolá, leva
na mão os Dados,
Mas perde tudo se
vai jogar.
E esta que passa,
toda de arminhos,
(Vê! D’entre o
povo em êxtase, olha-a a Mãe)
Leva, sorrindo, a
Coroa dos Espinhos,
Criança em flor
que ainda não os tem
Ao
arraial agora grupos de rapazes tocam nos violões e violas choradinhos
sentidos, e cantam n’uma toada melancólica, quadras de amor, algumas do
tamanhos da légua da Póvoa. Aqui e ali mesas de doces enfeitadas com brancas
toalhas.
Lindas
raparigas em grupos de braços dados, compram doces e amêndoas. De repente um
alarido medonho; mulheres a gritar, paus e foices roçadoras agitam-se no ar. É
o José Luis que faz das suas. Conhecedor do jogo
da capoeira atira cacetadas certeiras, deitando a terra o leigo que se aproxima furioso e cego, na
ansia de bater somente. A luta é geral. São os de Vila Boa, que vieram provocar os de Avidagos mas que levam bordoada de três em pipa. No meio do
arraial, um grupo confuso de homens, agitando cacetes; salientando-se a figura
elevada de José Luiz, no seu jogo de saltos; quase sempre com o seu pequeno pau
em guarda e aproveitando um instante de sossego, para n’um salto bem calculado
e n’uma castanha certeira, abrir a
cabeça a um de Vila Boa. A desordem
termina; vamos ouvir o Sermão, mas no meio do caminho nova comoção. O José Luiz,
que tinha vindo sozinho, para a aldeia, fora esperado, agarrado covardemente,
deitado ao chão e cosido a facadas.
A
faca, a arma dos miseráveis, tomando o lugar do pau, para satisfazer uma
vingança, que não se pudera fazer.
Ao
Sermão agora à porta da igreja. Breve, mas comovedor. Lembra a vida de Jesus.
As mulheres choram abafando soluços para escutarem a frase quente e vibrante do
Pregador.
Não
termina a festa sem que duas encantadoras raparigas, as mesmas Olympia e Júlia,
nos encham as algibeiras de doces e de amêndoas.
O
nosso agradecimento.
Originalmente
publicado no jornal “A Nação” de 27
de Agosto de 1901 sob o título “Trás-os-Montes
- Uma festa d’aldeia”.
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos).