Memórias da familia Perfeito de Magalhães - omaganifico@gmail.com

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - XVII

O administrador do concelho de Mirandela, José da Rocha Sousa, acaba de assistir impassível à prova mais cabal da ignorância da câmara que com promessas falsas fez eleger.
O palácio do paço que a câmara alugara acaba de ser penhorado por falta de pagamentos.
Reina grande agitação na vila por mais esta enorme prova de estupidez e de maldade.
O dinheiro que se gastou com a grotesca visita do sr. Teixeira de Sousa, chegava bem para pagar parte do arrendamento atrasado.

Originalmente publicado no jornal “A Nação” de 11 de Outubro 1902 sob o título “Trás-os-Montes – Mirandela – 9".
Republicado em Dezembro de 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos).

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - XVI

Depois de uma curta visita a esta vila, partiu em direção a Lisboa o sr. Teixeira de Sousa, ministro da marinha. A impressão que s. ex. leva de Mirandela não pode ser mais desgraçada. Quiseram que ele entrasse como politico e não como ministro; como regenerador e não como transmontano, como protetor e não como homem de talento…. O resultado foi nojento. Vivas apenas as teve dos empregados tabaqueiros; como homenagens, esses trapos vergonhosos, esses escudos partidos e porcos, que se ostentavam em mastros torcidos. Como mostra de admiração e respeito a recusa de um camarista de assistir ao banquete porque custava 6$000 reis e ele camarista, jantaria em outras parte por dez tostões!!!
Não houve animação, o mais leve entusiasmo, a mais pequena nota de alegria.
De noite, as ruas iluminadas ridiculamente; balão apagado aqui, balão a brilhar acolá e o vento a agitar doidamente os trapos a que aqui chamaram bandeiras e que o Porto tirou dos seus monturos, para festejar o ministro em Mirandela. Nunca a nobre vila transmontana apresentou um aspeto tão desolador.
Os convites para o banquete eram feitos com o pedido imediato de dinheiro. Enfim, uma verdadeira vergonha.

Originalmente publicado no jornal “A Nação” em 11 de Setembro de 1902 sob o título “Mirandela 8”.
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos). 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - XV

Chega no dia 3 a esta vila o sr. Teixeira de Sousa, titular da pasta da marinha. Vem o s. ex. colher os louros do terrível combate eleitoral, que teve por teatro esta vila e por herói o sr. José da Rocha Sousa, administrador do concelho.
S. exa. vem pela estrada de Chaves, e à entrada da ponte será recebido por meia dúzia de foguetes e dois ou três sol-e-dós.
Chega o s. exa. em dia de feira, e a sua figura forte de transmontano dará motivo para abridelas de boca aos aldeões seus patrícios.
O discurso do sr. presidente da câmara já está impresso, e dizem-nos que tem erros de gramática a dar com um pau. Não nos admira. Deve estar em harmonia com a ciência da câmara atual.
O ministro vai ficar banzado. O sr. José Sousa, mais o sr. Mendes Bragança, antigo republicano, moderno regenerador, antigo progressista, moderno anarquista, andou numa roda viva.
Um regenerador, sr. José Andrade, consta que já disse que tinham vindo…. 5 contos para se festejar dignamente o ministro! Também se diz que a câmara, que não paga as suas dívidas, também vota uma verba destinada a pagar as manifestações sinceras e espontâneas que o sr. Teixeira de Sousa receberá n’esta vila.
Agora uma pergunta:
Porque não estende s. ex.a a sua viagem gloriosa até Bragança, para esta cidade lhe agradecer como deve a boa vontade com que contribuiu para a votação da construção do caminho-de-ferro?
Porque será que o nobre ministro visita só a vila, estação terminus dos caminhos-de-ferro transmontanos, e não vai por essa estrada de Bragança fora, colher agradecimentos pela energia com que defendeu, perante o chefe do estado, perante o ministro do reino, perante o parlamento, a construção do caminho-de-ferro de Mirandela a Bragança?
É que s. exa. receia que essas manifestações de agradecimento, sejam as verdadeiras manifestações espontâneas.
Agora depois da pergunta, uma afirmativa.
Como ministro e como homem político, o ilustre titular da marinha não volta mais a Mirandela.
Assim como sr. Teixeira de Sousa foi ministro por um bambúrrio da sorte, favorecido pela saída do partido regenerador, do sr. João Franco e dos seus amigos, assim a eleição de Mirandela.
Foi por um bambúrrio, favorecido pelas circunstâncias que a câmara é regeneradora.
Ao partir no comboio, pode dizer como homem politico…. adeus a Mirandela.

Publicado originalmente no jornal “A Nação” de 4 de setembro de 1902, sob o título “29 de Agosto”. 
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos). 

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - XIV

Neste concelho, a política regeneradora está, como vulgarmente se diz…. a esticar o pernil.
Aproveitando-se das discórdias progressistas, levantadas pelo indiferentismo político do conselheiro Eduardo José Coelho, o administrador do concelho sr. José de Sousa, dando presentes, garantindo empregos, mentindo a todos, conseguiu levar avante uma lista de camaristas, onde figuravam apenas dois ou três homens ilustrados, que não tardaram a abandonar os seus cargos, ficando – oh! vergonha do concelho! – um presidente que vende ao balcão cebo e bacalhau, que não sabe escrever e que ao fazer todas as tardes as suas contas…. conta pelos dedos!
O vice-presidente da câmara é o chefe do partido republicano local!
Imaginem os leitores como a política se arrasta miseravelmente por este concelho!
Que mais diremos d’esta paz podre em que vivemos, num meio abafadiço da política de campanário, onde se não pode dizer mal d’um regenerador por ser parente em 4.º grau do progressista, com quem falámos, nem se pode dizer mal d’um progressista por ser primo do regenerador com quem estamos de conversa.
Se vamos entregar à redação do jornal da terra um artigo politico; não pode ser publicado porque vai ofender um primo, do cunhado, do sogro, do tio, do padrasto do diretor da folha local.
Política de terras pequenas.
Sindicato dos dois partidos da rotação.
-Acabaram as malhadas, vendo-se o pão e as uvas começarem a amadurecer. Depois da casta “Bastardo de S. João” é a casta francesa “Agustenga” a segunda a amadurar. E depois lentamente, todas as outras, acabando na “Torral Tamara”, a mais serôdia de todas elas.
Os “Moscateis” são pouco temporais, tendo o “Moscatel de Jesus” a má qualidade de apresentar cachos onde algumas uvas se ostentam soberbas de maduração ao passo que outras se apresentam verdes e bem verdes.
De todos os moscatéis é o preto o de maior luxo e de maior estima.
O Moscatel de Hamburgo, o de Alexandria, o Branco, o Roxo e o Troveller, são aqui bastante estimados.
De castas para vinhas, temos nesta região em primeiro lugar o Alvarilhão, em seguida Abelhal (branco), tinto Magalhães Bastardo, Cabernet e outras.
Como uvas de mesa a Carnal, a Ferral d’Isalva, a Dona Branca, o Dedo de Dama e os Moscatéis todos.
As videiras apresentam-se geralmente belas e galhardas, escondendo por entre as suas folhas verdes, soberbos e grandes cachos.
Até breve.

 Publicado originalmente no jornal “A Nação” de 19 de Agosto de 1902, sob o título “Mirandela 14 de Agosto”.
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos). 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - XIII

Só na província de Trás-os-Montes!...
Só nesta remota província, portuguesa de lei, é certo, mas atrasada demais, se veem administradores ridículos, cenas mirabolantes e camaristas talqualmente nasceram…. isto é, inocentes de todo.
Eles, que administram as escolas dos concelhos, não poderiam abrir uma escola também de b a bá para estudarem a cartilha de João de Deus, a tabuada, a regra de três?
Também, tais camaristas, tais professores.
Uns são agricultores, podadores, poetas de três vinténs, falsos políticos, etc., etc., mas professores…. isso nicles.
Outros passam a vida a dormir, a roncar de assobio; mas ensinar, isso nada.
Por essa razão, é a nobre província transmontana a mais atrasada em instrução, aquela que mais analfabetos contém, a mais desprezada, a mais escarnecida.
E como é bom, o povo transmontano!
Com que milagrosa paciência atura visitas de ministros, festas grotescas em honra deles, fantochadas reles de barracas de feira, e paga tudo…n’uma beatitude d’alma que é mais que toleima.
Para todos analisarem onde chega a paciência do transmontano, basta dizer que uma povoação inteira, confiada na palavra do administrador, que dissera servir aquele que a povoação venera e respeita como um santo, votou em massa n’um pedaço d’asno que nem sabe escrever!!!!
Por hoje basta.

 Publicado originalmente no jornal “A Nação” de 23 de setembro de 1902 sob o título “Traz-os-montes, 19”. 
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos). 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - XII

Hoje durante a missa o reverendo abade d’esta vila, em poucas palavras, referiu-se a essa questão religiosa, que ultimamente tanto tem agitado povo português, fazendo-o abandonar o barrete de dormir e a lacrimejante esposa, para vir para a rua berrar e dar patada.
 Questão tão grave e séria que tem transformado até os barrigudos e pacatos comerciantes em exímios atiradores de pedra! Questão tão grave e séria que obrigou a sair à liça do Século armado com a sua pena, vertendo lama e pus o sr, Luiz de Judicibus! Questão tão grave e séria que faz esquecer o estado de ruina das nossas finanças e o miserável estado da nossa politica liberal, para lembrar apenas que vivem em território português, alguns padres, que desprezando sindicatos e poucas vergonhas, ensinam no sertão arriscando a vida, arruinando a saúde, aos selvagens ignorantes o amor a Deus e o respeito a Portugal.
Questão tão grave e séria que faz com que o canalha faminto das ruas, cuspa infâmias sobre a reputação de umas santas mulheres, que tratam com carinhosas estima os velhinhos (vejam as irmãzinhas dos pobres) e que acolhem sorrindo docemente, o soldado ferido em combate, que recolhe à ambulância, negro de pólvora, ensanguentado e roto (vejam as irmãs hospitaleiras …. vejam o livro de Mouzinho).
Pois falou o nosso reverendo abade, mas à saída da igreja no pitoresco largo, um grupo de cavalheiros dos mais considerados e respeitados da vila, entre os quais se salientava o sr administrador do concelho, esperava o pároco e n’uma discussão viva e animada discutiram todas as palavras do digno sacerdote.
Se por vezes as vozes se levantavam além do natural, se por vezes a discussão tomava grande calor era porque n’aquele grupo de simpáticos cavalheiros, havia uma salada de políticas.
Levantou-a ali pugnando pela Ideia da Legitimidade, uma voz forte e enérgica, que foi levar aos ouvidos d’outro legitimista, que escutava atento, argumentos enérgicos, vibrações sonoras, saída franca e destemidamente da boca d’um soldado na nossa Causa, a pugnarem n’esse grupo de leigos, pela causa do Direito.
Como é consolador ouvir pugnar energicamente pela Ideia, que guardamos e respeitamos, como se guarda e se respeita um relicário santo.
E vai longa a correspondência para narrarmos ao público tão pouca coisa…. uma discussão e umas frases sobre ordens religiosas destas é certo durante o santo sacrifício da missa e escutadas com o maior respeito e no mais profundo silêncio. É que a causa da correspondência é outra, embora tirada sobre estas duas notícias.
É que através d’estes montes, n’estes peitos fortes de transmontanos, a ideia religiosa é bem guardada, mas com todo o respeito.
PS - Quando já tínhamos deitado a correspondência no correio um grupo de republicanos e liberais promoveram uma manifestação ordeira e pacata, como protesto contra as palavras do sr. abade.
Foi porém respeitado o largo da Igreja e a residência do sr. abade terminando tudo em vale de lençóis.

 Publicado originalmente no jornal “A Nação”, em 28 de Março de 1901, sob o título “Mirandela – 28 de março de 1901. 25 de março".
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos). 

terça-feira, 1 de novembro de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - XI

Esta vila foi teatro de um horrível espetáculo. No sábado último chega aqui um homem de uma aldeia próxima. Tinha sido mordido por um cão danado e devia seguir no comboio. Para fazer horas sentou-se n’um dos bancos da Avenida, mas de repente levanta-se lívido, a espuma a cair da boca, os dedos convulsivos como garras e a gritar n’uma voz de louco:
- Fujam que estou danado!
O pânico não se pode descrever.
Homens, mulheres, crianças, tudo em correrias, na ansia de uma fuga desordenada. Gritos, pragas, mas mais alta para ser ouvida por todos, a suprema frase:
- Homem danado! …. homem danado! ...
Um benemérito, o sr. Acácio Baptista, que passava n’essa ocasião pelo local da cena, atira-se valentemente ao hidrófobo, conseguindo, com a ajuda de outras pessoas, meter o homem na prisão, visto não haver casa mais segura para um tal ente.
Fomos ver o pobre homem à cadeia. Era um horror! O homem transformado em fera. O corpo em convulsões; da boca ensanguentada, a baba escorria em golfadas, deixando por vezes sair sons roucos…. rugidos de animal feroz.
A camisa despedaçada deixava ver o peito nu, onde gotas de sangue formavam a miúdo fios caprichosos.
Era horrível o aspeto d’aquele homem.
Fora da cadeia, no pequeno largo, a mãe, vinda a toda a pressa da terra, gritava n’um choro convulsivo; a mulher, abraçada a uma criança, de meses que sorria inocente, parecia a estátua da dor, e um filhito de meia dúzia de anos, pedia em grita para ver o pai.
La dentro a agonia de um homem no vigor da vida. Agonia horrível, medonha!
Os braços presos pelo colete-de-forças, hirtos, caiam ao longo do corpo, impotentes, mas os olhos brilhavam como olhos do tigre, os lábios moviam-se para morder e rasgar.
Instantes depois a fúria tinha um termo. Era desnecessário o colete-de-forças. E a besta fera agora transformada em homem pálido quase inânime, estendia fremente os braços para fora das grades, na ansia de abraçar os filhos, a mulher e a mãe. Mas recuava lívido. Ele que tinha fugido de sua casa, como um cão danado foge da casa do dono para não morder, compreendia o seu estado, e lá do fundo da prisão, lágrimas de sangue corriam-lhe pelas faces cavadas pelo sofrimento.
Horrível ….
A fúria começara novamente.
A mulher, louca, perdida, corria as vielas da vila abraçada à filhinha, que chorava, e sentadas às portas, outras mães, abraçavam os filhos que abriam as boquitas em sorrisos risonhos como o desapontar das alvoradas.
Que contraste!
Vinte e quatro horas depois, o homem, obrigado a estar tranquilo pela morfina, tombava morto a balbuciar o nome da mãe, dos filhos, da mulher.
Leitores:
Padre nosso, que estais no céu…

Publicado originalmente no jornal “A Nação”, em 27 de Setembro de 1902, sob o título “Trás-os-Montes – Mirandela, 22".
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos). 

sábado, 1 de outubro de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - X

Muito de propósito temos esperado o fim de um acontecimento altamente cómico, passado n’uma freguesia deste concelho, para levarmos ao conhecimento dos nossos leitores a seguinte narrativa, procurando da nossa parte tornar  a descrição quanto possível alegre, o que não será muito difícil, atendendo às extraordinárias cenas do acontecimento.
Foi o seguinte:
O sr. dr. Mateus Sampaio jurou meter na cadeia, por razões que não vêm agora para o caso, um ex-recebedor d’este concelho, acusado de desvio de fundos e refugiado na aldeia em questão, onde o povo o estima como ele o merece.
Muito de passagem, porque todos que conhecem o ex-recebedor sabem as causas porque está sujeito a prisão, diremos que a acusação é devida unicamente à confiança desmedida que o ex-recebedor tinha na lealdade dos seus amigos.
Mas não é este o nosso assunto.
Vamos à questão.
O sr. dr. Mateus Sampaio jurou a prisão do ex-recebedor. Estava o seu partido no poder, e portanto poderia dizer como Luiz XIV, que o estado era d’ele.
Mas o mais grave era que todo o povo da aldeia não deixaria prender o ex-recebedor.
 Com uma esperteza que o honra muito, o ilustre conselheiro aluga 12 polícias e manda cercar a casa do réu, na madrugada de um dia de feira em Mirandela. Para lá tinham partido cerca de 30 homens. Estava a povoação deserta.
Os 12 heróis cercam a casa, mas, Oh! Céus! Começam os sinos a tocar a rebate, e de cada casa sai porta fora, em desalinho, uma mulher.
Juntam-se, armadas, no terraço, berram. Os polícias lívidos, apontam os revólveres, e as mulheres respondem-lhe a tiros… de bofetões. Arranca-se o preso do meio da força policial, forma-se uma barreira de valentes peitos femininos entre o preso e os polícias, rasgam-se com as unhas aguçadas as carnes dos cidadãos da ordem, arrancam-se pelos dos formidáveis bigodes policiais, e os sinos n’um desespero.
Fogem desordenadamente os doze valentes, levando sacos de farelos…. atrás, nas costas, a uivarem de medo pelas estradas, rotos, e a povoação volta ao sossego.
Passados tempos, surge uma força militar na aldeia. Abraçam-se os soldados, abrem-se-lhe as portas de todas as casas e a força militar retira, não tendo encontrado o ex-recebedor.
Isto foi em meados de Dezembro.
Então o sr. dr. Mateus Sampaio, de mão sobre as barbas, jura cortar as ditas se antes de entrar o novo ano não tivesse prendido o réu.
Já cortou as barbas, sr. conselheiro? ...

 Originalmente publicado no jornal “A Nação” de 15 de Janeiro de 1903 sob o título “Trás-os-Montes – Mirandela, 12”.
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos). 

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - IX

Uma das notas mais sinistras d’uma povoação pequena é o dobre do sino tocando a rebate…. o anúncio de fogo.
Sons rápidos, uns atrás dos outros, precipitados, numa ansia de socorro, a vibrarem sinistros, muitas vezes no silêncio da noite.
E a pequena vila que dorme tranquila, acorda rápida; brilham logo luzes nas janelas, sentem-se os passos rápidos nas vielas estreitas, ouvem-se vozes aflitivas, perguntando o sítio, o local, onde as chamas galgam, onde as labaredas rompem pelas frestas, pelas janelas, pelos telhados, anunciando nos seus sinistros clarões a miséria e a desgraça. As mulheres a maior honra, a maior gloria.
Cântaros à cabeça, pálidas, o suor a correr em bica, mal vestidas, galgam em instantes a distancia que vai do rio ao local do incêndio, para levarem a água, único mas terrível adversário do fogo.
Os homens de pé sobre o telhado da casa incendiada, despendem sobre a enorme braseira os cântaros que as mulheres, na sua sublime dedicação, lhes chegam.
Salientando-se às vozes de comando aos bombeiros, aos gritos dos homens; mais fortes que o estalido da fornalha, vibram gritos de dor. São os inquilinos da casa incendiada que choram os seus poucos haveres perdidos e que lamentam em gritos de alma a miséria que chega, a desgraça que surge mais sinistra que as chamas, mil vezes mais horrível que o incendio.
Houve um incendio na vila. Casa pobres, habitadas por jornaleiros, ficaram apenas com as paredes. Um grupo de rapazes promoveu uma récita no teatro da vila, destinando o produto d’ela para suavizar a miséria dos desgraçados.
Generosa ideia, bons corações.
Mas lembramos à comissão que entregue o mais depressa possível o saldo da receita aos pobres desgraçados que morrem de fome.

Originalmente publicado no jornal “A Nação” em 21 de Setembro de 1902 sob o título “Trás-os-Montes, Mirandela 18”.
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos). 

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - VIII

Para se assistir a uma festa d’aldeia, em Trás-os-Montes, é necessário, não envergar a cota de malha dos cavaleiros da Renascença, mas levar para segurança própria, o arsenal d’um Tartarin de Tarascon, de Daudet.
Quatro carabinas, dois punhais, uma espada, um pau, um revólver e um par de pistolas.
E isto não quer dizer que o transmontano seja mau… longe d’isso; a hospitalidade transmontana é lendária, principalmente nas aldeias, mas porque as rivalidades de aldeia para aldeia, são muitas, rivalidades que se pagam em castanha pilada e da fina, quando em qualquer dos povos rivais, se realizam festejos. São os ódios tão violentos que gente estranha completamente a essas rivalidades é vítima muitas vezes.
Mas passemos a descrever a festa, O Sermão, o arraial, a procissão.
Para descrevemos esta última, depomos a pena e deixamos falar António Nobre, na sua fase colorida e quente:
Passa a procissão;

Estralejam foguetes e morteiros.
Lá vem o Pálio e pegam ao cordão
Honestos e morenos cavalheiros.
Altos, tão altos e enfeitados, os andores,
Parecem Torres de David, na amplidão!
Que linda e asseada vem a Senhora das Dores!

Olha o Mordomo. à frente, o Sr. Conde.
Contempla! Que tristes os Nossos Senhores,
Olhos leais fitos no vago... não sei onde!
Os anjinhos!
Vêm a suar:
Infantes de três anos, coitadinhos!
Mãos invisíveis levam-nos de rastros
Que eles mal sabem andar.

Esta que passa é a Noite cheia de astros!
(Assim estava, em certo dia, na Judeia!
Aquele é o Sol! (Que bom o Sol de olhos pintados!)
E aquela é a Lua-Cheia!
Seus doces olhos fazem luar...
Essa, acolá, leva na mão os Dados,
Mas perde tudo se vai jogar.
E esta que passa, toda de arminhos,
(Vê! D’entre o povo em êxtase, olha-a a Mãe)
Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos,
Criança em flor que ainda não os tem

Ao arraial agora grupos de rapazes tocam nos violões e violas choradinhos sentidos, e cantam n’uma toada melancólica, quadras de amor, algumas do tamanhos da légua da Póvoa. Aqui e ali mesas de doces enfeitadas com brancas toalhas.
Lindas raparigas em grupos de braços dados, compram doces e amêndoas. De repente um alarido medonho; mulheres a gritar, paus e foices roçadoras agitam-se no ar. É o José Luis que faz das suas. Conhecedor do jogo da capoeira atira cacetadas certeiras, deitando a terra o leigo que se aproxima furioso e cego, na ansia de bater somente. A luta é geral. São os de Vila Boa, que vieram provocar os de Avidagos mas que levam bordoada de três em pipa. No meio do arraial, um grupo confuso de homens, agitando cacetes; salientando-se a figura elevada de José Luiz, no seu jogo de saltos; quase sempre com o seu pequeno pau em guarda e aproveitando um instante de sossego, para n’um salto bem calculado e n’uma castanha certeira, abrir a cabeça a um de Vila Boa. A desordem termina; vamos ouvir o Sermão, mas no meio do caminho nova comoção. O José Luiz, que tinha vindo sozinho, para a aldeia, fora esperado, agarrado covardemente, deitado ao chão e cosido a facadas.
A faca, a arma dos miseráveis, tomando o lugar do pau, para satisfazer uma vingança, que não se pudera fazer.
Ao Sermão agora à porta da igreja. Breve, mas comovedor. Lembra a vida de Jesus. As mulheres choram abafando soluços para escutarem a frase quente e vibrante do Pregador.
Não termina a festa sem que duas encantadoras raparigas, as mesmas Olympia e Júlia, nos encham as algibeiras de doces e de amêndoas.
O nosso agradecimento.

 Originalmente publicado no jornal “A Nação” de 27 de Agosto de 1901 sob o título “Trás-os-Montes - Uma festa d’aldeia”. 
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos). 

sexta-feira, 1 de julho de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - VII

No seio da província é o aspeto geral em extremo agradável, risonho e pitoresco. Porém, quem entra em Trás-os-Montes, pela diligência da Régua a Vila Real, pelo Pousinho, pela Espanha e por Foz Tua, imagina que a província oferece sempre os mesmos panoramas, agrestes e desagradáveis.
É por isso que a lenda, pouco a pouco se encarregou de pistar Trás-os-Montes com as mais horríveis cores, obrigando o lisboeta, a imaginar a província, debaixo de um prisma verdadeiramente falso.
As aldeias transmontanas, essas sim, é que oferecem aos olhos do viajante observador o cunho semisselvagem das épocas romanas.
É rara a casa caiada tão vulgares no nosso pátrio Minho; é rara a casa pintada de amarelo, de verde, de azul, de mil cores, que a gente topa a cada passo na província minhota, denunciando pelo mau gosto a habitação de um português abrasileirado. É rara a limpeza, é melancólico o aspeto, são primitivas as casas, as janelas não têm vidraças, as escadas de pedra, faltam-lhes a maior parte dos degraus e para acabar, é rara a camponesa que lava a casa aos dias soltos.
As mulheres não andam como as suas vizinhas, as minhotas descalças e não tem o vestir característico d’elas. São melancólicas, a maior parte feias, sem sorrisos provocadores e gaiatos, tão vulgares nas minhotas. Os homens, baixos, reforçados, feios, sem elegância, são contudo hospitaleiros, leais, e em extremo enérgicos.
É tradicional e lendária a valentia transmontana. São respeitados em Coimbra, como os mais genuínos representantes da velha raça portuguesa, os estudantes de Trás-os-Montes.
O povo ama a musica e rara é a aldeia, onde por uma tarde serena, quando o sol prestes a sumir-se por detrás das montanhas beija com seus últimos raios a povoação melancólica, se não fazem ouvir os sons duma guitarra e o canto dolente do fado.
Mirandela, como vila, apresenta-nos em geral um aspeto risonho e agradável e os seus campos vizinhos o viço e a beleza das campinas do mondego.
Em Mirandela, dentro da cidade, fala-se um português correto, inteiramente oposto ao falar dos aldeãos das povoações vizinhas, que se não entende.
Não se cultiva o milho, a broa minhota é desconhecida.
Nas aldeias não se conhece o trigo quase, sendo o pão centeio a comida do camponês batatas, poucos legumes, centeio, tais são as produções transmontanas.
Uma nota curiosa para fechar esta correspondência.
O nome de mulher mais vulgar é Palmira. Em todas aldeias existem cinco a seis mulheres com este nome e louvado Deus, de todas quantas conhecemos que se chamam assim, nenhuma prima pela beleza.
Continuaremos ainda.

Publicado originalmente no jornal “A Nação” em 6 de Abril de 1902 sob o título “Trás-os-Montes – Mirandela”.
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos). 

quarta-feira, 1 de junho de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - VI

Resta-nos dizer mais alguma coisa a respeito de Trás-os-Montes, prestar a nossa mais ardente homenagem de reconhecimento a este bom povo transmontano e dar aos nossos leitores mais algumas leves informações sobre Mirandela.
Já na Nação nos referimos ao posto ampelográfico, esplendida e quase completa coleção de castas das videiras, onde o lavrador encontra rapidamente os bacelos ou garfos da casta que deseja. Já nos referimos também e largamente à estação de fomento agrícola, sábia e esplendidamente dirigida por um dos nossos primeiros agrónomos o sr. João Inácio de Menezes Pimentel, nosso antigo lente na escola de Coimbra, e hoje nosso diretor. Menezes Pimentel é uma d’estas inteligências robustíssimas, cultivadas pelo mais aturado estudo, que honram a classe a que pertencem.
A par disso, um carácter diamantino, uma alma nobre em todo o termo da palavra.
Nada mais dizíamos sobre a estação de fomento agrícola, se o nobre ministro das obras públicas devido aos esforços do nosso diretor não viesse auxiliar com algumas medidas, o esforço que durante longos anos Menezes Pimentel fez para não só manter a estação a seu cargo, como também chamar sobre ela a atenção do governo.
Foram poucas as medidas tomadas pelo ministro, mas já são suficientes para se continuar animadamente, na luta em defesa da sericultura pátria.
De resto, sobre Mirandela resta-nos apenas esboçar o perfil ativo da ponte sobre o Tua, as duas igrejas da vila, a Avenida e a lama d’estes dias de chuva contínua, lama que de certo nos chegaria às orelhas se a chuva continuasse.
Falta-nos analisar o caráter do transmontano nestas rápidas linhas. Alma e coração d’um verdadeiro português o de cada habitante desta província. Tipo pequeno, espadaúdo, olhar ao mesmo tempo leal e enérgico, persistente no trabalho, respeitador e hospitaleiro, é sem dúvida o melhor exemplar do provinciano que conhecemos.
E por agora nada mais.

Publicado originalmente no jornal “A Nação” no dia 8 de Março de 1902, sob o título “Trás-os-Montes (Mirandela)”.
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos). 

domingo, 1 de maio de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - V

Mirandela, a vila graciosa que a sorrir desata, quando o comboio saindo d’uma apertada curva a descobre aos olhos do viajante, é talvez hoje a primeira povoação do distrito de Bragança, e diríamos de Trás-os-Montes, se Vila Real não viesse altiva protestar, lançando-nos o guante de desafio.
Chaves, perante a nossa afirmação, fita-nos militarmente, numa arrogância desdenhosa e depois de mirar a pequenez do destacamento em Mirandela aquartelado, poisa o seu olhar de fidalga nos seus regimentos, nas suas muralhas, nos seus quarteis.
Bragança, furiosa, é capaz de nos atirar à cara com o nome pomposo e sonoro do seu governo civil, e com os amarelados pergaminhos da sua nobreza.
Pois tenham paciência, porque contra factos não pode haver discussão.
Ninguém mais respeitador do que nós, das tradições heroicas de Bragança e de Chaves. Mais que nos arquivos, a história destas duas povoações está escrita, nas muralhas esburacadas pelas balas e cimentadas pelo sangue generoso de tanto heroico português, mas hoje que o montante é a acha de armas foram postas de parte para dar lugar às práticas espingardas modernas, que os valentes combates corpo a corpo se substituíram por lutas cobardes em que um homem a 2 quilómetros do seu inimigo é alcançado por uma bala, hoje, que se deixa a honra com a espingarda atrás da porta, e na rua se entende a mão pedindo dinheiro a quem nos insultou, fica mal falar no nosso soberbo passado, nas épocas de brio e da dignidade.
Sim, quando nos referimos a ele, é cheios de assombro, quase sem compreender tanta abnegação e tanto patriotismo.
Que Chaves e Bragança guardem com amor as suas tradições, já que os seus habitantes não sabem compreender que é necessário ir com o tempo e não dormir embalados em sonhos de glória, pois hoje não se escuta apenas o toque da alvorada à porta d’um quartel, é necessário desfivelar da cinta a espada preta, despir a cota de malha, e em mangas de camisa ir para o balcão d’uma loja, ou vestir a comprida sobrecasaca de politico, enfim, viver com o seu tempo.
Assim o compreendeu Mirandela e é por isso que hoje está ligada ao mundo civilizado por um caminho-de-ferro. É por isso que a sua importância industrial e comercial aumenta todos os dias. É por isso que não se encontra aqui uma casa por alugar e que todos os dias se abrem lojas novas.
Quando é necessário também ir buscar às gavetas os seus pergaminhos também os mostra orgulhosa, mas guarda-os outra vez, não se deixa embalar em sonhos cor-de-rosa. Lida e trabalha pelo comércio, pela industria, pela agricultura. Desenvolve a sua inteligência e a sua força e não dorme como Chaves e Bragança, com a espada na mão.
Pelo contrário, achou que o aço inútil da sua espada era melhor aplicá-lo à construção dum arado.
É por essa razão a povoação mais importante do distrito de Bragança.

 Publicado originalmente no jornal “A Nação” em 26 de Maio de 1901.
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos).

sexta-feira, 1 de abril de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - IV

Mirandela, por agora a estação términus do nosso comboiosito, é a rainha do Tua, a vila mais importante de todo o distrito de Bragança. Nenhuma outra se lhe atreve a disputar primazias, nem em beleza natural, nem comercialmente.
Duas vezes por mês, nos dias 3 e 14, realizam-se aqui feiras importantíssimas de cereais, bois, carneiros, porcos, etc., tendo às vezes as compras e vendas, realizadas, atingido a importante soma de vinte contos de reis. Das Lamas, de Mascarenhas, da Torre, dos Avidagos, de todas as aldeias do concelho e das vilas vizinhas como Alfandega da Fé, Vila Flor, e mesmo da cidade de Bragança, chegam carros, grandes rebanhos de cabras, carneiros, manadas de bois e importantíssima quantidade de gente, que durante algumas horas enchem de animação as ruas da vila.
Hoje Mirandela, devido à política insensata de um desconhecido, que para aqui veio fazer a política pessoal do sr. ministro da marinha, acha-se n’um estado tal de exaltação, que, por diversas vezes, tem havido mortes, desordens graves e trocas de tiros, em plena rua, em pleno dia!
Dominava aqui o partido progressista, e a sua política dirigida mais prudentemente pelo sr. Conselheiro Eduardo José Coelho, tem lançado raízes de mais confiança. O atual administrador, antigo progressista, e moderno regenerador, chegou, prometeu, ganhou a eleição camarária, e faltou, como bom político, às promessas feitas.
Mas deixemos em paz o nojo d’estas politicas, para continuarmos descrevendo Trás-os-Montes como o conhecemos, hospitaleiro, leal e energético.
Ficam ainda para o próximo número mais algumas informações sobre os aspetos da província.

Originalmente publicado no jornal “A Nação” em 6 de Março de 1902 e com o título “Trás-os-Montes (Mirandela), 2 março”. 
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos).

terça-feira, 1 de março de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - III

Quando em Lisboa se pronuncia a palavra Trás-os-Montes, acodem à imaginação doentia do lisboeta, as lembranças sinistras de qualquer coisa de horrível, como que o espetáculo medonho de fragas, prestes a despenharam-se do cimo das montanhas, áridas e secas, sem uma árvore ou uma flor campesina a sorrir ao viajante.
E não é assim.
Em Foz-Tua quando o nosso comboiosito de via reduzida começa a desenrolar, pacatamente, no seu passo de carroça de bois, aos olhos do passageiro, os primeiros panoramas transmontanos, os sentimentos do viajante são de aberta hostilidade para a província que vai visitar.
De um lado montanhas a pique, rochas suspensas por milagre sobre a via-férrea; do outro lá em baixo, um pequeno fio de água, aberto sobre a rocha, correndo rápido, precipitando-se a miúdo nas azenhas, por entre turbilhões de espuma.
É o Tua que banha mais em cima uma das mais ridentes e risonhas vilas da província - Mirandela.
A linha férrea, aberta uma centena de metros acima da margem do rio, corre, é certo, ao princípio, por entre rochas negras, mostrando-se o Tua no seu aspeto desagradável.
As primeiras estações são como solitários marcos, onde os passos do chefe e o som da campainha, dando os sinais ao comboio, mostram que ali vive um ermitão, um ente solitário, ganhando uns diários cobres e devendo escutar à noite os uivos dos lobos, seus únicos companheiros.
De vez em quando, n’uma aberta de montanhas, descortina-se uma aldeia sombria, pondo uma nota ainda mais triste no melancólico panorama.
Tais são a Sobreira e Abreiro. Depois, pouco a pouco, o Tua vai alastrando, as águas de negras tornam-se claras, as montanhas afastam-se dando lugar ao rio, que se estende indolente, mostrando-nos que se em Foz-Tua faz cara feia, sabe também sorrir, n’um sorriso doce de amante.
Tem sítios onde a nossa imaginação julga descortinar os encantos do Mondego, e mesmo em algumas partes as curvas graciosas do rio doce em Matosinhos.
O nome da penúltima estação da linha é até poético – Latadas.
De Latadas a Mirandela, o comboio afasta-se, embora por pouco tempo, da margem do rio, e corre por entre campos cultivados, mostrando-nos a relva tão forte como a dos campos do nossos poético Minho.
Finalmente, numa curva apertada, o comboio mostra-nos Mirandela. O panorama da vila no primeiro lance d’olhos é semelhante a Coimbra. Uma nova Coimbra mas em miniatura, sem capas negras, mas com a lendária hospitalidade transmontana.

 Publicado originalmente no jornal “A Nação” em 6 de Março de 1902 e com o título “Trás-os-Montes (Mirandela), 2 de março”. 
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos).

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

PELA PROVÍNCIA DE TRÁS-OS-MONTES (de Lamego a Mirandela) - II

Em certas ocasiões, quando o nosso esprito se acha acabrunhado por desgostos; quando a nossa alma dúvida da generosidade e da bondade, e se enche de amargura, perante factos que o nosso coração e a nossa consciência se repugnam aceitar, de tal modo eles são revoltantes, pratica a gente para se distrair ações que consideramos depois quase como loucuras.
Tal foi a viagem debaixo de neve de Lamego a Mirandela.
Logo de manhã, abrindo a janela do nosso quarto, no Hotel Central, vimos, com espanto, o largo da Sé, os telhados das casas, as torres das igrejas, cobertos com a toalha imaculada e branca da neve.
Grandes farrapos iam engrossar o tapete das ruas, ao passo que o céu se apresentava com a sua cor parda, dos maus dias.
Cá em baixo, na sala de jantar, logo uma má nova. A diligência para a Régua não partira em vista do mau tempo.
E nós tínhamos que partir.
Sentámo-nos à mesa do almoço. Em frente de nós um rapaz forte, simpático, agradável, concentrado, como quem tem uma ideia fixa. O dono do hotel, espirituoso, alegre, afirmava que a diligência não partiria também no dia seguinte.
De repente o hóspede de que já fizemos reparo, afirma, voltando-se sereno para todos:
- Pois eu tenho de estar na Régua, hoje sem falta, a tempo de partir no comboio para Salamanca.
Era uma Mousinhada, mas daquele feito, havia de ser eu o tenente Miranda. Afirmei logo:
- Pois se o sr. vai, também eu o acompanho.
Os outros hóspedes de voz em grita, afirmavam que em certos pontos da estrada devia haver meio metro de altura de neve, que os cavalos não podiam andar, que era quase uma coisa impossível.
Que importava o que eles diziam?
Pegar nas nossas malas, sair do hotel, chamar um cocheiro novo e embebedá-lo, foi obra de um quarto de hora. O cocheiro depois já não desejava senão marchar.
Largámos no meio do espanto geral.
A neve caia ainda em grandes farrapos, e a estrada apresentava-se aos nossos olhos como um comprido e grosso tapete branco.
Na terça parte do caminho, o cocheiro volta a si e afirma-nos que não pode ir para diante.
Silencio da nossa parte.
O gesto apenas de entregar ao cocheiro a cabaça de aguardente. O cocheiro bebe e o carro roda, enterrando-se mais a mais na neve.
Pouco depois a primeira dificuldade séria. Os cavalos não podiam andar com o frio nas pernas. Então agora fomos nos que salvamos a situação.
Envolvidas as pernas dos cavalos em panos, que por sorte trazia o cocheiro, continuámos a marcha, analisando deslumbrados a extraordinária força da neve, que fazia com o peso vergar as árvores, e a alvura imaculada dos campos, onde as varas das videiras já podadas, punham tons pretos naquele grosso tapete branco, sem fim.
Agora estava de todo enterrado o carro. Então tivemos de sair e com as pernas enterradas até ao joelho, ajudar os cavalos e o cocheiro.
Durou a luta uns bons dez minutos e nós nem sequer sentíamos as pernas de tal modo as tínhamos frias.
O dito espirituoso também apareceu.
Tinha saído de Lamego com pernas de carne e parece-me que entrou na Régua com pernas de pau.
Finalmente surge a ponte do Douro, a Régua, a estação... o comboio enfim.
O resto da viagem um encanto. O comboio que corria veloz, limpando a via com o seu limpa calhas, mostrava-nos, desenrolando aos nossos olhos, panoramas que a nossa imaginação conservará para toda a vida.

N.E. Publicado originalmente no jornal “A Nação” em 8 de Fevereiro de 1902 sob o título “Debaixo de Neve – De Lamego a Mirandela”. 
Republicado em 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos).