Memórias da familia Perfeito de Magalhães - omaganifico@gmail.com

domingo, 1 de janeiro de 2017

Cartas da Aldeia - I

O leitor, aposto eu já, ao ler o título do artigo ou crónica, ou como lhe chama em Lisboa, pensa logo: cá temos mais uma correspondência falando em colheitas, na novidade, afirmando que os suínos engordam, que o sr. regedor anda agora a toque de caixa, às ordens do administrador do concelho, este às ordens do governador civil, e o governador civil às ordens do sr. Hintze, que dá carneiro com batatas.
Que se joga na botica o gamão entre o médico velho, imagem viva do das pupilas do senhor reitor e o boticário, ambos unidos, para sem perigo, darem cabo da humanidade; que o sacristão, toca o sino todas as manhãs…. Maldito sacristão que me acorda sempre, o estafermo; que as galinhas vão para o poleiro às seis da tarde, etc., etc.
Pois não senhor. Esta crónica não conta nada d’isso. Nem conta as lindas alvoradas, nem a água pura que aqui se bebe, nem o ar saudável do Marão.
Nem fala nas couves, nas batatas, nas noites de São João, nem nas lindas camponesas em volta da fogueiras, nem nos Zés com os corações tefe-tefe, a olharem para elas.
Também esta carta não bota cantiga ao desafio, nem fala em caçadas, não toma por assunto a vida pacata do campo, nem descreve as mulheres fazendo meia às portas dos casebres e dizendo mal umas das outras. Nada d’isso, leitor amigo. Não contamos como são maus os caminhos no Douro, nem descompomos o mestre-escola por se imaginar colega… em miniatura, como ele diz, do sr. Fialho d’Almeida, pois o estilo d’ele, mestre, (é o que ele afirma) parece-se extraordinariamente com o do grande critico.
!!!
Esta correspondência, leitor amigo, não é feita em sala com as janelas abertas que deixam entrar o ar embalsamado dos laranjais em flor, como é sempre costume dizer ou escrever d’aldeia.
Nem aqui se curva a pena reverente perante os lindos panoramas que se desfrutam… como escreve o correspondente do Janeiro de qualquer lugarejo.
Não contamos as noites de luar, nem analisamos o vestido verde e amarelo da mestre régia, nem aqui muito em segredo vamos contar a conversa que tivemos com a Tia do Zé dos Casais… que nos disse que a Ana tinha agora um namoro.
Crónicas da Aldeia… e o leitor a imaginar que a gente lhe falava n’estas coisas do campo… que a levada vai baixa com pouca água, que o milho já espigou e que a égua do sr. reitor teve dois cavalinhos.
Nada; nós não somos maçadores. Não contamos que o Zé Joaquim roubou a água ao Patarata, nem o que nos disse agora em segredo o boticário… que a sr.ª morgada pintava o cabelo e que a criada velha de lá, tinha chamado urso do monte ao menino filho mais velho do fidalgo de A-de-barros.
Bem podíamos contar… Crónica d’Aldeia… o leitor imaginou logo que o filho do António de Felgueiras, tinha roubado um molho de erva ao Sr. Teles da quinta de Entre Ventos.
Ora essa! A nossa carta d’Aldeia, não é como as outras; não conta que o porco da Joana é o mais pesado do que o do António da Queimada e que o nosso cão de fila mordeu n’um braço o ano passado a caseira de Tourais.
Carta d’Aldeia explica… Mas como ela já vai grande, até outra vez, leitor amigo.
PS – Vai agora a explicação da nossa carta. Desejamos dizer que o nosso hortelão o Lourenço anda de mal com as filhas do Gago.
Agora sim.

Originalmente publicado no jornal “A Nação”  em 21 de Junho de 1904 sob o título “Cartas da aldeia”.


Republicado em Dezembro de 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos).

Sem comentários:

Enviar um comentário