Cinco horas da madrugada leitor alfacinha, –
que se encontra a essa hora talvez no primeiro sono… cinco da manhã…. é o
despontar da vida, da natureza, n’uma apoteose sublime de luz e de cânticos.
Cantam os simples!! Canta um galo! … e logo em seguida ao desafio os
outros do lugarejo e responde o sino, chamando à missa das almas e o cavador
passa, enxada ao ombro, em busca do trabalho. Rubro o oriente… a vanguarda
anunciadora… do Santíssimo Sacramento, o Sol.
Manhãs de verão no campo!...
E o leitor de Lisboa ao ler-nos pensa:
Onde é que eu já vi uma alvorada? ...
Depois, de repente, lembrando-se:
Ah!... foi n’um quadro de Malhoa, no Grémio
Artístico, às 3 horas da tarde.
No campo até se anda pela manhã passeando…
leite de burra.
Depois de se tomar uma caneca do tal leite
passeia-se. Como em Lisboa se faz na
Avenida, aqui faz-se…. leite de burra
pela quinta fora.
E outra coisa meu lisboeta anémico…. quando
os do campo desejam couves ou fruta, mandam um criado – não imaginem vocês que
o criado vai à praça da Figueira, ou à canasta da mulher da hortaliça – vai à
horta ou ao pomar e traz … o que a gente pediu, sem termos de largar massas!!!
Isto aposto eu que vocês não sabiam.
Nunca n’uma correspondência da província se
disse semelhante coisa.
E ainda mais… os do campo não gastam água do
contador… nada d’isso; para bebermos água não necessitamos de tubos, nem de
torneira, nem da visita – que vocês também dispensariam decerto – mensal do
cobrador da Companhia – não, senhores, quando queremos beber fazemos do nosso
chapéu caneca e bebe-se em boa companhia… cabras, carneiros, bois, tudo, enfim,
bebe da mesma água e…. grátis!!!
Ora toma meu alfacinha!
Quando se arma uma qualquer desordem, a gente
aqui não apita, não grita ó da guarda,
não aparecem polícias fardados, de chanfalho e revólver. O regedor agarra na justiça de Sua Majestade e zás… parte a justiça de Sua Majestade nas costas
dos desordeiros, quando não apanha para o seu tabaco com a justiça de Sua Majestade partida nas mãos. Os feridos não
encontram almas caritativas que os
levem às boticas, aos bancos dos hospitais… atam eles próprios lenços vermelhos
nas cabeças feridas e vão pelo seu pé para casa, sem levarem atrás pasmaceiro e
alvar acompanhamento.
Repórteres
não existem, felizmente, para como verdadeiras senhoras vizinhas que são,
contarem a 80.000 leitores a nossa vida, desde o que comemos ao almoço, até ao
que comemos à ceia, se tomamos banho ou lavamos a cara todos os dias, e, enfim,
publicarem o nosso perfil e estamparem no jornal os retratos de toda a família,
não esquecendo o da criada da cozinha!
Nada mais revoltante do que esse vício das grandes cidades.
Vai a gente, por exemplo, n’um acompanhamento
último de um amigo, cabeça descoberta, pensativa e triste, prestando a última e
amiga homenagem a nosso querido morto, quando de repente aparece um d’esses bisbilhoteiros que nos pergunta com ar
de quem nos faz um favor:
- O seu nome para publicarmos no jornal… de
tal.
Ah! com franqueza, muitas vezes tivemos a
vontade de como resposta aplicar
formidável soco nas ventas do repórter
atrevido e mal criado.
E afinal… os informadores dos jornais não têm
culpa…. a culpa tem esse meio lisboeta que, como já dissemos, vive… para fingir, para deitar poeira e dinheiro
aos olhos dos outros… para, n’uma palavra, deitar figura.
O verdadeiro símbolo da vida de Lisboa é…
sabem quem? … o sr. Pimentel Pinto, ministro da guerra.
Para deitar figura… é janota.
Para deitar figura como militar, ordena
manobras militares ridículas.
Mas se são ridículas ele não tem nada com
isso… porque afinal deitou figura!
Para deitar figura castigou um benemérito da pátria, Henrique de Paiva Couceiro.
Fez figura triste, fez figura de…. o sr. juiz
Veiga que faça o favor de pensar na palavra que desejamos escrever – mas afinal
fez figura, que é o que ele quer
sempre.
Como não pôde nunca fazer boa figura – vejam
os casos do srs. Fernando de Sousa e Moraes Sarmento - faz figura d’urso… mas faz figura.
É o símbolo do alfacinha.
Cá pela província também temos um exemplar
que faz figura de foguete e de morteiro… é o sr. Teixeira de Sousa
(continua)
Publicado originalmente no jornal “A Nação” em 7 de julho de 1904, sob o
título “Cartas da Aldeia, VI”.
Republicado em Dezembro de 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos).