Memórias da familia Perfeito de Magalhães - omaganifico@gmail.com

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Cartas da Aldeia - VI

Cinco horas da madrugada leitor alfacinha, – que se encontra a essa hora talvez no primeiro sono… cinco da manhã…. é o despontar da vida, da natureza, n’uma apoteose sublime de luz e de cânticos. Cantam os simples!! Canta um galo! … e logo em seguida ao desafio os outros do lugarejo e responde o sino, chamando à missa das almas e o cavador passa, enxada ao ombro, em busca do trabalho. Rubro o oriente… a vanguarda anunciadora… do Santíssimo Sacramento, o Sol. Manhãs de verão no campo!...
E o leitor de Lisboa ao ler-nos pensa:
Onde é que eu já vi uma alvorada? ...
Depois, de repente, lembrando-se:
Ah!... foi n’um quadro de Malhoa, no Grémio Artístico, às 3 horas da tarde.
No campo até se anda pela manhã passeando… leite de burra.
Depois de se tomar uma caneca do tal leite passeia-se. Como em Lisboa se faz na Avenida, aqui faz-se…. leite de burra pela quinta fora.
E outra coisa meu lisboeta anémico…. quando os do campo desejam couves ou fruta, mandam um criado – não imaginem vocês que o criado vai à praça da Figueira, ou à canasta da mulher da hortaliça – vai à horta ou ao pomar e traz … o que a gente pediu, sem termos de largar massas!!!
Isto aposto eu que vocês não sabiam.
Nunca n’uma correspondência da província se disse semelhante coisa.
E ainda mais… os do campo não gastam água do contador… nada d’isso; para bebermos água não necessitamos de tubos, nem de torneira, nem da visita – que vocês também dispensariam decerto – mensal do cobrador da Companhia – não, senhores, quando queremos beber fazemos do nosso chapéu caneca e bebe-se em boa companhia… cabras, carneiros, bois, tudo, enfim, bebe da mesma água e…. grátis!!!
Ora toma meu alfacinha!
Quando se arma uma qualquer desordem, a gente aqui não apita, não grita ó da guarda, não aparecem polícias fardados, de chanfalho e revólver. O regedor agarra na justiça de Sua Majestade e zás… parte a justiça de Sua Majestade nas costas dos desordeiros, quando não apanha para o seu tabaco com a justiça de Sua Majestade partida nas mãos. Os feridos não encontram almas caritativas que os levem às boticas, aos bancos dos hospitais… atam eles próprios lenços vermelhos nas cabeças feridas e vão pelo seu pé para casa, sem levarem atrás pasmaceiro e alvar acompanhamento.
Repórteres não existem, felizmente, para como verdadeiras senhoras vizinhas que são, contarem a 80.000 leitores a nossa vida, desde o que comemos ao almoço, até ao que comemos à ceia, se tomamos banho ou lavamos a cara todos os dias, e, enfim, publicarem o nosso perfil e estamparem no jornal os retratos de toda a família, não esquecendo o da criada da cozinha!
Nada mais revoltante do que esse vício das grandes cidades.
Vai a gente, por exemplo, n’um acompanhamento último de um amigo, cabeça descoberta, pensativa e triste, prestando a última e amiga homenagem a nosso querido morto, quando de repente aparece um d’esses bisbilhoteiros que nos pergunta com ar de quem nos faz um favor:
- O seu nome para publicarmos no jornal… de tal.
Ah! com franqueza, muitas vezes tivemos a vontade de como resposta aplicar  formidável soco nas ventas do repórter atrevido e mal criado.
E afinal… os informadores dos jornais não têm culpa…. a culpa tem esse meio lisboeta que, como já dissemos, vive… para fingir, para deitar poeira e dinheiro aos olhos dos outros… para, n’uma palavra, deitar figura.
O verdadeiro símbolo da vida de Lisboa é… sabem quem? … o sr. Pimentel Pinto, ministro da guerra.
Para deitar figura… é janota.
Para deitar figura como militar, ordena manobras militares ridículas.
Mas se são ridículas ele não tem nada com isso… porque afinal deitou figura!
Para deitar figura castigou um benemérito da pátria, Henrique de Paiva Couceiro.
Fez figura triste, fez figura de…. o sr. juiz Veiga que faça o favor de pensar na palavra que desejamos escrever – mas afinal fez figura, que é o que ele quer sempre.
Como não pôde nunca fazer boa figura – vejam os casos do srs. Fernando de Sousa e Moraes Sarmento - faz figura d’urso… mas faz figura.
É o símbolo do alfacinha.
Cá pela província também temos um exemplar que faz figura de foguete e de morteiro… é o sr. Teixeira de Sousa
(continua)


Publicado originalmente no jornal “A Nação” em 7 de julho de 1904, sob o título “Cartas da Aldeia, VI”.
Republicado em Dezembro de 2016, no livro “Entre Montes”, Crónicas do Maga 1900-1904, de José Perfeito de Magalhães de Villas-Boas (Alvellos).